16.12.10

De mal a pior




A Fnac deu-me um enorme manancial de experiências, boas e más. Quando lá estava tinha uma vaga noção do que era ser explorado e ganhar pouco. Ainda não se tinha cristalizado na minha mente esse pressuposto estruturante do consciente colectivo. Um lugar-comum muitas vezes inadequado, por sinal.
A delimitação das minhas funções não era clara e, talvez por isso, talvez por excesso de solicitude, acabei por aplicar tudo o que sabia e o que tive de saber para desempenhar uma multiplicitude de funções, transversais a vários departamentos. Não me queixava disso, queixava-me de outras coisas, que não se prendiam com o que fazia, variado e aliciante, é certo, mas com a naturalidade com que as exigências me eram colocadas, quer em termos de disponibilidade horária, resistência física e psicológica, quer em termos da amplitude das minhas capacidades profissionais. Essas exigências, claro está, eram unilaterais e pautavam-se pela ausência do critério que tinha de ser usado, e espremido até à última gota de viabilidade, pelo departamento em que me integrava, já então dotado de parcos recursos. Trilhado este caminho, que resultou numa previsível, frequente e, ao que parece, conveniente rotatividade, a Fnac, como tantas outras empresas à boleia dos míticos planos de contingência, pôs-se a despachar os que foram ficando, e que entretanto atingiram um tecto salarial incómodo. Encarando, possivelmente, determinadas funções como de somenos importância (sobretudo quando o mercado é muito pouco exigente e a concorrência inexistente), começou a recrutar estagiários em barda para as desempenhar, numa concentração olímpica de requisitos e conhecimentos, de modo a manter em funcionamento a linha de montagem já implementada.
Sempre achei e defendi, sem resultados práticos, que o nosso era um trabalho especializado e exigente. Fazia-o por mim e por outros como eu, incluindo os estagiários não remunerados da altura, que assistiam os departamentos de Marketing e Acção Cultural.
Hoje, a épica estupidez da Fnac consiste na negação mais revoltante de tudo aquilo que apregoou durante anos, para fazer reluzir a sua imagem de marca: a promoção da cultura e do lazer, no que tem de diverso, diferente e abrangente. Porque a total falta de respeito pelas múltiplas áreas de conhecimento que presume abarcar, e, consequentemente, por todo e qualquer indivíduo que se movimente à margem dos universos de controlo e gestão, contabilidade e clientelização, é o traço mais evidente na sua "política" corrente de contratação. O que se exige num anúncio deste tipo (exemplar de uma larga família) é obsceno para aquilo que se dá. E mesmo que a retribuição fosse outra, continuaria a ser chocante. Falo com conhecimento de causa. Há um limite para as horas que damos, a velocidade com que produzimos, os instrumentos que dominamos e as pressões que sofremos. Chama-se saúde, dá imenso jeito a quem a possui, e não há "experiência" nem currículo que justifique perdê-la.
A Fnac, para mim, incorpora e, pior, manifesta desabridamente todas as marcas da decadência moral responsável pela morte inevitável da ética profissional.
Não é caso único, infelizmente, mas, para o tipo de empresa que é, talvez seja paradigmático. E porque lá trabalhei, e até cheguei a acreditar naquilo tudo, as entranhas remexem-se-me ainda mais.

5 comentários:

Sónia M. disse...

Venha matar-se a trabalhar para nós! E de graça!

Ainda assim aposto como vão ter centenas de candidaturas. Principalmente daqueles que ingenuamente acreditam que depois do estágio virá um trabalho a sério, digno e justamente remunerado.

João disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João disse...

Precisamente. E "a tua missão é".
O tom. A maioria acredita nisso, e mesmo que muitos não acreditem, é uma forma de reunirem experiências, independentemente das condições em que o fazem. E quem os pode censurar?

Espalha-brasas disse...

Antes chamava-se Trabalho Escravo, agora chama-se Estágio. Necessita-se Trabalho Escravo altamente qualificado, reza o anúncio. Por pudor não pedem foto de corpo inteiro, em fato de banho. Escravos sim, mas agradáveis à vista... já agora com dentes em bom estado e bracinhos fortes para os carregos!
A quem serve esta crise afinal? Não parece prolongada artificialmente? Senão veja-se quem tem lucros extraordinários com o presente estado de coisas.

João disse...

A dada altura perdemos a noção, e toda e qualquer objectividade é toldada pelo histerismo apocalíptico da comunicação social. Penso que é essa a ideia.

Arquivo do blogue