11.9.12

Os coelhos e o carbúnculo da dignidade


Por muito cruel que seja a expressão popular “matar dois coelhos de uma cajadada”, a metáfora instalou-se sem pudor no nosso inconsciente e a ela recorremos com frequência, nas mais diversas circunstâncias. Há razões para não ter caído em desuso, apesar do imaginário violento e anacrónico, num tempo em que os animais têm direitos e em que habituamos as nossas crianças a identificar o símbolo do coelho nas embalagens. Em que as muitas espécies em perigo, cortesia da escalada civilizacional, ilustram a butal inversão de valores. Uma prática que hoje nos parece bárbara era imperativa nas economias de subsistência, visto que os coelhos, dotados de um invulgar ímpeto reprodutivo, transmitiam doenças às ovelhas e destruiam numerosas colheitas. Quando os pastores desferiam o hábil golpe que eliminava dois coelhos durante a cópula, faziam-no, naturalmente, por uma questão de sobrevivência. Era um gesto preciso, necessário, e, quero crer, misericordioso. Os coelhos constituiam uma praga. Controlá-la era responsabilidade de quem dependia da terra e do gado para viver, assegurando a subsistência de toda a comunidade. Por isso hoje usamos licenciosamente esse adágio, embora sejamos mais que nunca responsáveis pela preservação da dignidade dos bichos, e ao mesmo tempo cada vez menos capazes de conservar a nossa. A evolução social, alimentada tão livremente como o mercado, reinventou a metáfora com mais perversidade que nunca. E muito maior alcance. Ela persiste porque não houve mudança. Só mudou a perspectiva. Os animais e as relações de equilíbrio da ruralidade pragmática transfiguraram-se em bestas mundanas de enorme engenho e desigual poderio. Indomáveis, não respeitam domínios, não temem represálias e só devem obediência a quem, entre iguais, tem as presas mais afiadas. Arrepanham só para si o pedaço de terra e de subsistência que é de todos. Com animais não se pode dialogar, argumentar, negociar, contemporizar. Com animais deste porte e índole, por mais responsabilidade social e auto-regulação a que nos agarremos, por maior tepidez dos tempos que nos sirva de desculpa, não há medidas reivindicativas, dissuasoras ou preventivas que funcionem. E tal como as metáforas se adaptam à História, também os cachaços mudaram de dono, agora à mercê de uma raça de coelhos mutantes que aprendeu a reproduzir-se em número reduzido e exponencialmente letal. Tão letal quanto o receio de lhes fazermos frente. 

Outrora, nas devidas mãos, o cajado desferia golpes certeiros e inevitáveis. Sem demais questões.

Desenho de Peter Ravn

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